No passado dia 30 de Março, o semanário Times Literary Supplement publicou a edição nº 6000 (exacto, 6 mil). Parece-me digno de nota que uma publicação “não viral” (como agora se diz) tenha tranquilamente sobrevivido desde 1902 — a data de nascimento, como recorda o Editorial desta edição, de John Steinbeck, Richards Rodgers, Karl Popper, Ogden Nash e Elsa Lanchester.

E é digno de nota que esta edição 6000 comece com um texto totalmente desalinhado relativamente às actuais obediências tribais. Trata-se de um artigo de John Gray (ex-professor em Oxford e na LSE), intrigantemente intitulado “Un-liberty: Some problems with the new cult of hyper-liberalism”.

É difícil resumir aqui o argumento do autor — que, aliás, não estou seguro de subscrever na totalidade. Mas fiquei impressionado com a elegância do argumento e com o desafio que lança à pobreza e tédio dos pseudo-debates tribais que nos envolvem. Basicamente, parece-me que John Gray desafia a actual ortodoxia dominante sobre a dicotomia infeliz entre populismo e liberalismo. E alerta para a séria hipótese de alguns anti-populistas estarem a repetir um erro antes cometido pelos positivistas de August Comte: a enganadora identificação entre liberdade e conformidade com um ponto de vista particular, designado por “liberal”.

Liberdade, na melhor tradição liberal clássica (sem aspas), quer dizer ausência de coerção por terceiros. Isso significa que não existe um modo de vida “correctamente liberal”. Existe apenas tolerante controvérsia entre diferentes modos de vida, desde que nenhum deles ameace terceiros. Esta tolerância pluralista é garantida pela lei — igual para todos, independentemente da religião, “raça”, ou até “género”, como agora se diz.

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Muito diferente desta ideia de “viver e deixar viver” é a ideia de um certo liberalismo iliberal — que John Gray designa, na esteira de Raymond Aron, como “religião secular”. Este liberalismo iliberal entende a liberdade como conformidade com um modo de vida “correctamente liberal”. Este seria o modo de vida radicalmente autónomo, “libertado” de todo e qualquer vínculo particular — à comunidade local, à religião, à nação, a regras de conduta tradicionais (e, seguramente também, a normas clássicas de cortesia e de vestuário).

Está bem de ver que, se a liberdade for entendida como adesão a um modo de vida particular considerado “livre” ou “liberal”, esse entendimento da liberdade torna-se sinónimo de conformidade. Como consequência, os modos de vida que não se reconheçam nesse modo de vida particular (chamado livre ou liberal) vão natural e legitimamente reagir.

Não há nada de mal nessa reacção — que hoje é designada por populista ou nacionalista. Ela faz inteiramente parte da saudável controvérsia que sustenta as sociedades livres e anima os debates parlamentares. O problema surge quando a “religião secular” do liberalismo iliberal recusa aceitar como legítima essa reacção. E o problema torna-se ainda mais grave quando — por causa, ou com o pretexto, da intolerância da religião secular do liberalismo iliberal — os ideólogos radicais no campo  populista passam a atacar a liberdade e o pluralismo, identificando-os demagógica e intencionalmente com o liberalismo iliberal.

Será possível evitar este choque tribal entre o populismo e a “religião secular” do liberalismo iliberal?

Creio que sim: defendendo o primado da lei, igual para todos, e a tolerância e moderação inerentes a um regime demo-liberal fundado na soberania dos Parlamentos nacionais. Mas, para que isso seja possível, é necessário que os moderados de ambos os lados se libertem das respectivas obediências tribais — e da obsessão com o número de seguidores nas chamadas “redes sociais”.